Transcrevo aqui um texto inspiradíssimo de Sua Santidade, pronunciado hoje na tradicional audiência geral das quartas-feiras. A partir dele, proponho uma reflexão. Vamos lá:
Para o mundo pagão, que acreditava em um mundo cheio de espíritos, em grande parte perigosos e contra os quais era preciso defender-se, aparecia como uma verdadeira libertação o anúncio de que Cristo era o único vencedor e de que quem estava com Cristo não tinha que temer ninguém. O mesmo vale para o paganismo de hoje, porque também os atuais seguidores destas ideologias vêem o mundo cheio de poderes perigosos. A estes é necessário anunciar que Cristo é vencedor, de modo que quem está com Cristo, quem permanece unido a Ele, não deve temer nada nem ninguém. Parece-me que isso é importante também para nós, que devemos aprender a enfrentar todos os medos, porque Ele está acima de toda dominação, é o verdadeiro Senhor do mundo.
Para ler todo o texto, que faz parte de uma série de reflexões sobre São Paulo, dentro do Ano Paulino (estamos comemorando dois mil anos de seu nascimento), clique aqui.
O que me chamou a atenção nesta passagem foi o seguinte ponto: para quem acompanha este blog, apenas alguns dias atrás citei uma fala de Olavo de Carvalho, que relaciona o desenvolvimento da razão com a idéia de um Deus transcendente, que está além da natureza. Transcrevo novamente a referida explicação:
Henrique Garcia me pergunta: “Qual sua opinião sobre certas correntes de idéias, presentes sobretudo no meio liberal, que trabalham incessantemente por achincalhar a fé face à razão, atribuindo-a ao obscurantismo, quando não à irracionalidade pura e simples?” Olha aqui, Henrique: o pessoal que faz isso só mostra que é um bando de ignorantes, eles não sabem nem o sentido da palavra razão. A idéia da razão surge na Grécia exatamente como, vamos dizer, a tendência da alma para a contemplação do transcendente. É só a idéia do transcendente que permite o surgimento da razão. A idéia de um Deus transcendente é a idéia fundamental da razão, idéia que na verdade era impossível numa fase anterior da civilização, onde tinha aquela idéia dos “deuses espalhados” aí pela natureza, deuses mais ou menos fundidos na natureza. Na hora em que a idéia da divindade se destaca da natureza cósmica e se abre para a mente humana a idéia do Deus transcendente, do Deus que está para lá do universo, um Deus absolutamente invisível, infinito, aí é que começa a razão, isso é a base da razão. Agora, esses idiotas nem sabem o que é razão!
Esta idéia, de um Deus que transcende a natureza, surge na Grécia pagã, mas se concretiza com o advento do Cristianismo, já que a natureza foi completamente dismistificada pela nova religião – as antigas divindades gregas estavam diretamente associadas a forças da natureza. Para os cristãos, só existe um único Deus, personificado em Jesus Cristo, e a natureza é Sua criação – ou seja: a natureza é obra de Deus, e sua manifestação não tem, em si, nada de divina ou sobrenatural. Essa separação entre “criador” (Deus) e “criatura” (natureza) vai ser de fundamental importância no desenvolvimento do pensamento ocidental. Lembrei-me de outra explicação, bastante didática, do brilhante jornalista português João Pereira Coutinho. Publico aqui um fragmento do texto publicado na Folha Online (íntegra, aqui), que trata sobre a polêmica do Papa com o Islam, ao citar em discurso proferido em uma universidade alemã uma frase que teria ofendido os “sentimentos religiosos muçulmanos”. Este é outro assunto, eu quero é chamar a atenção para o primeiro parágrafo do texto:
O Papa Bento 16 visitou uma antiga universidade alemã e resolveu falar sobre as relações difíceis entre a fé e a razão. Digo “relações difíceis”, mas Ratzinger discorda: para Bento, não existe nenhuma incompatibilidade entre a “fé” e a “razão” porque a razão é uma dádiva de Deus. A tese não constitui uma originalidade do atual Papa. É tese ortodoxa da Igreja Católica e, mais, foi precisamente um tal entendimento que permitiu a emergência da (expressão perigosa) “civilização ocidental”: do renascimento carolíngeo à cultura monaquista da Idade Média (que salvou os textos clássicos que era possível salvar), o convívio entre as coisas do espírito e os trabalhos da mente contribuiu para a fundação das primeiras universidades (de Bologna a Paris) e até para lançar as bases do pensamento científico. Como? Pela “despersonalização” da natureza. Ao contrário do que sustentavam as antigas culturas animistas, a idéia de um universo criado por Deus implica a idéia de um criador que dotou o mundo de leis que só a razão humana pode descobrir.
Parece-me que os três fragmentos acima têm uma relação entre si. Ao proclamar Cristo, Deus Encarnado, o Senhor do mundo, submetendo todas as coisas a Si, o Cristianismo anuncia um Deus transcendente à natureza, infinito, situado muito além da matéria e da própria racionalidade humana; mas ao mesmo tempo indica ao homem a sua própria superioridade sobre a natureza, partindo do que está escrito no Gênesis, logo no comecinho da Bíblia (1, 26-28):
26. Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra.”
27. Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.
28. Deus os abençoou: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.”
Esses versículos são alguns dos mais importantes trechos da história do pensamento humano. Através da leitura atenta deles, podemos concluir:
- Deus criou o ser humano, e somente ele, à sua semelhança (notem o verbo na primeira pessoa do plural, Façamos, vejam a Trindade em ação!). Ou seja: o homem é a criatura mais importante da Criação.
- Que ele reine: o homem é o rei dos animais. Ele é soberano, tem vontade e expressa suas vontades. Ele subjuga, domina a tudo. Ao dominar a natureza, torna-se capaz de transformá-la.
- Essa ação humana de transformar a natureza tem as bênçãos do próprio Deus. Mas, não nos esqueçamos: esse domínio sobre a Criação é uma dádiva do Criador; não é um mérito do próprio homem.
- E Deus não somente abençoa ao homem, mas também à mulher, e a mulher também foi criada à sua imagem e semelhança. É coincidência a questão da igualdade de direitos entre homens e mulheres ter sido levantada justamente no ocidente? Qual era o tratamento dispensado às mulheres nas culturas anteriores ao advento do Cristianismo?
Um mundo sem espíritos, sem superstições, sem divindades traiçoeiras, mas com um único Deus, Criador de tudo, que coloca homem e mulher juntos como ponto alto de sua Criação e os instiga a submeterem a Sua própria Criação, a fim de dominarem tudo. A partir da elevação da razão ao transcendente, vislumbra-se a possibilidade de um método de investigação da natureza, visando sua transformação; a partir da noção de homem e mulher criados à imagem de Deus, amadurece a idéia da igualdade entre os sexos perante Deus e perante a justiça dos homens; e, entre aqueles que ouviram a mensagem bíblica “enchei a terra e submetei-a”, ergue-se a sociedade ocidental, a mais dinâmica, avançada e criativa de todas as culturas que já existiram sobre a face da terra.