Aquele que faz proselitismo pela causa da incredulidade é, basicamente, alguém necessitado de crença.
Eric Hoffer.
proselitismo
São Paulo ou “Seu” Paulo?
Por Carlos Ramalhete.
O Ministério Público Federal (MPF) mandou tirar os crucifixos das repartições do estado de São Paulo, alegando que a sua presença ofenderia os não católicos. Mas… será que não deveríamos, então, falar do estado de “Seu” Paulo? Mais ainda, do estado do inominável, na medida em que São Paulo, em homenagem a quem o estado foi batizado, ops, nomeado, só recebeu esta homenagem por ter sido apóstolo cristão?
Os judeus ortodoxos dão graças a Deus todos os dias por não terem nascido não judeus (“gói”). São Paulo, ou “Seu” Paulo, escreveu que “não há mais judeu nem grego”. A julgar pelo pensamento do MPF do estado Tal, deve haver um monte de suscetibilidades feridas nesta história. Melhor mudar o nome do estado. Ah, Santa Catarina também dança, assim como todas as cidades com nome de santos. O Estado do Amazonas, que recebeu este nome em homenagem a um povo da mitologia grega, também pode ofender quem não acredita nele. O Rio de Janeiro, por trazer no nome do mês (que também teria que mudar) uma referência à divindade romana Janus, o deus de duas caras, também deve provocar comichões e abespinhar suscetibilidades. Ih, qual será o dano ao turismo provocado pela retirada, à moda Talibã, da imensa estátua do Cristo Redentor que ofende os não católicos que olhem para cima na antiga capital do país?
Creio ser bastante evidente, para quem não faz parte de uma minoria ínfima de gente cuja sensibilidade à flor da pele torna a convivência cotidiana um exercício de masoquismo e suscetibilidades feridas, que o MPF pisou na bola. Epa, eu não gosto de futebol. Devo proibir esta expressão? Não. Se eu não gosto de futebol, o problema é meu. Não posso me ofender com a onipresença do jogo e de suas metáforas.
Ainda mais que futebolista, contudo, a nação brasileira é culturalmente católica. Os nomes de santos são os nomes das pessoas, e a própria noção de bem e de mal é definida em moldes católicos; podemos mesmo dizer que o padrão da sociedade é católico.
Para a imensa maior parte dos brasileiros, católicos ou não, um crucifixo é um símbolo da Justiça, do Bem. Ver uma ofensa a outras crenças na presença de um crucifixo implica necessariamente em vê-la nos nomes de estados e cidades, nos nomes próprios das pessoas, na organização social do país, nos dias da semana, nos meses, no preâmbulo da Constituição Federal…
Querer proibir a presença do crucifixo implica em querer proibir um dado constitutivo da própria nacionalidade brasileira, importar uma noção a nós estranha do que seja a Justiça, o Bem, o certo e o errado. O Brasil não surgiu nem subsiste em um vácuo; temos uma cultura própria, com base lusitana e católica, que independe até mesmo da própria religião seguida por cada brasileiro.
O brasileiro protestante, o brasileiro espírita, o brasileiro judeu, muçulmano ou ateu é em grande medida culturalmente católico. Cada um deles passou a vida dentro de uma sociedade que define seus padrões de comportamento dentro de uma matriz católica e que não pode ser explicada ou compreendida sem constante referência à catolicidade de sua origem, bem como à língua portuguesa, a costumes africanos e indígenas etc.
Ofender-se com símbolos católicos significa, em última instância, ofender-se com o Brasil, significa negar as origens e a presença da cultura brasileira, com todos os seus matizes. Mais ainda: para desgosto dos católicos mais ortodoxos, a percepção brasileira típica destes símbolos católicos frequentemente é operada em chave sincrética, vendo nos santos orixás africanos ou entidades espíritas.
O que neles não se vê, o que apenas o MPF vê, é um instrumento de proselitismo católico. Um crucifixo não faz de um lugar ou de uma pessoa algo católico, tal como o Rio Amazonas não leva ninguém a tomar como verdade a mitologia grega. As imagens sacras, no Brasil, são percebidas como símbolos do Bem e do Justo, não como afirmações de uma dada fé. Melhor seria se o MPF deixasse de lado esta estranha “cruzada” contra os crucifixos e procurasse fazer o bem e promover a justiça.
Fonte: Gazeta do Povo.